AMPDFT

Associação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

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Maria Rosynete de Oliveira Lima - Promotora de Justiça MPDFT

Passada a euforia das mudanças geradas pela Constituição de 1988 sobre o Ministério Público, começaram as reflexões internas sobre a atuação da Instituição no âmbito cível, regida em grande parte por leis anteriores ao texto constitucional, como, por exemplo, a intervenção na ação de mandado de segurança, baseada no artigo 10 da Lei 1.533/1951. E, o que antes servira para dar visibilidade e importância ao Ministério Público (defesa de interesses individuais) tem sido objeto de novas interpretações e aplicações, aliado às mudanças quanto à titularidade na defesa de ausentes – Advocacia e Defensoria Pública – defesa dos interesses da pessoa jurídica – Procuradoria dos Estados e Advocacia-Geral da União . A par disso, os artigos 127 e 129 da Constituição Federal fortaleceram o Ministério Público com o perfil de órgão agente, ampliando a titularidade antes restrita às ações penais públicas, ações de inconstitucionalidade e ação civil pública (Leis 6.938/1981 e 7.347/1985). Às tarefas tradicionais, juntaram-se novas atribuições, congestionando muitos Ministérios Públicos Brasil afora. Conciliar as atividades de órgão agente com a atuação fiscalizadora no processo (custos legis) transformou-se em nó górdio para a Instituição. E o primeiro questionamento que surge é: o novo perfil do Ministério Público traçado pela Constituição Federal afastou a possibilidade de atuação como custos legis, prevista no artigo 82 do Código de Processo Civil (Lei 5.869/1973) e em outras leis, anteriores à Constituição Federal de 1988? Reavaliar e redefinir as atribuições ministeriais no cível parece ser, agora, uma das etapas para se chegar a qualquer resposta. Um dos passos a ser dado consiste em analisar a atuação do Ministério Público na ação de mandado de segurança. Nesse contexto, já há algum tempo, tem se ouvido falar de nova corrente de pensamento acerca da intervenção do Ministério Público nas ações de mandado de segurança. Sustentam os seus protagonistas uma participação mitigada do Ministério Público, afastando as causas que não se insiram no artigo 82 do Código de Processo Civil e no artigo 127 da Constituição Federal. A discussão ultrapassou os lindes ministeriais e, em 2003, transformou-se em Projeto de Lei 72/2003, apresentado pelo Deputado Dimas Ramalho PPS/SP, e em tramitação no Senado Federal, visando a alterar o referido artigo 10, de forma a explicitar a participação do Ministério Público nessas ações . Todavia, enquanto uma parte do Ministério Público espera a alteração legislativa para modificar a sua atuação, entendendo que o dispositivo, como está redigido, determina a manifestação obrigatória do Ministério Público em todas as ações de mandado de segurança , uma outra já adota esse novo posicionamento . De fato, soa a princípio anacrônica a participação obrigatória do Ministério Público, em toda e qualquer ação de mandado de segurança, com fundamento em uma lei promulgada na segunda metade do século passado, quando o Ministério Público, não obstante desvinculado de quaisquer dos Poderes da República, era colocado ao lado da Justiça Comum (artigo 125 da Constituição Federal de 1946), devendo atuar em prol da pessoa jurídica de direito público em lide, além de velar pela exata aplicação dos comandos legais existentes, situação típica de um sistema positivista-legalista em que se inseria o Brasil. Não obstante tais fatos, o Ministério Público seguiu construindo novos caminhos, que foram sendo amparados por leis de vanguarda, como a Lei Complementar 40/1981 e as Leis 6.938/1981 e 7.347/1985. Esses diplomas começam a traçar as novas fronteiras de atuação ministerial – os direitos transindividuais – até então desconhecidos e desamparados por um sistema jurídico que só se preocupava com os direitos individuais. A Constituição de 1988 inaugura nova ordem jurídica. Nós, brasileiros, acostumados com uma obediência estrita da lei, passamos a enxergar novos horizontes, muitas vezes não amparados pelo acordo político do Legislativo, e o Ministério Público, tendo conseguido desvincular-se das amarras estatais, apresenta-se como o novo arauto desses novos direitos. No plano hermenêutico, as barreiras interpretativas impostas pelo positivismo legalista começam a ser superadas pelo constitucionalismo, que coloca a Constituição Federal como timoneiro de qualquer interpretação. Entramos no Estado de Direito Constitucional . Será esse, portanto, o fio condutor da atuação do Ministério Público. Assinala Marcelo Zenkner que “será legítima a intervenção ministerial preconizada pela legislação ordinária, em juízo ou fora dele, quando houver compatibilidade material e vertical entre uma determinada norma infraconstitucional que estabeleça a necessidade da atuação processual do Ministério Público e o sobredito dispositivo constitucional, no qual encontram-se estabelecidas as funções institucionais conferidas ao Ministério Público” (grifo nosso). Determina o artigo 127 da Constituição Federal que incumbe ao Ministério Público a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. E o artigo 129, inciso II, dispõe ser função institucional do Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nessa Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”. O elenco de direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988 é inesgotável – artigos 5º, 6º, 7º etc. Todavia, não se pode deixar de anotar que o constituinte utilizou, aqui e ali, as expressões “interesses” e “direitos”, indistintamente. Em termos dogmáticos, direitos são categorias diversas de interesses, mas, segundo a crítica de Calmon de Passos, o “interesse” que a ordem jurídica protege é aquele configurador de direito . Assim, a utilização de quaisquer dos temos é intercambiável e não deve gerar dúvidas no intérprete/aplicador da norma constitucional. Ocorre que o Ministério Público não está apto a tutelar quaisquer direitos/interesses . Determina a Constituição Federal que os interesses protegidos por direitos sociais e individuais indisponíveis são objeto de tutela do Ministério Público; a eles deve-se acrescentar os “relativamente indisponíveis”, cuja disponibilidade está sujeita a exigências legais especiais, segundo Sauwen Filho . Assim, o Ministério Público zelará para que a disposição sobre eles se opere conforme as exigências contidas na lei. Ademais, assinala o mesmo autor que, nos casos sobre direitos disponíveis e onde seja manifesto o interesse da coletividade na solução da lide, cabe ao Ministério Público “zelar pela prevalência do bem comum”. Abrigará, portanto, o interesse público primário, a exigir a proteção do Ministério Público, que se manifestará ativamente, nas hipóteses do artigo 129 da Constituição Federal, ou de forma interveniente na lide (artigo 82, inciso III do Código de Processo Civil). Nesse ponto, é preciosa a explicação de Celso Antônio Bandeira de Mello sobre a indisponibilidade dos interesses públicos, qualificado como princípio, e que merece transcrição : A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público –, não se encontram à livre disposição de quem quer quer seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever (...) Relembre-se que a Administração não titulariza interesses públicos. O titular deles é o Estado, que em certa esfera, os protege e exercita através da função administrativa, mediante o conjunto de órgãos (chamados administração, em sentido subjetivo ou orgânico), veículos da vontade estatal consagrada em lei. Assim, não se pode afastar, de pronto, a possibilidade de atuação do Ministério Público em ações judiciais (inclusive mandado de segurança) que versem sobre direitos/interesses disponíveis, porque pode haver a necessidade de defesa de interesse público primário. Daí a imprescindibilidade da intimação do Ministério Público em todas as ações de mandado de segurança (artigo 10 da Lei 1.533/1951). Ao Ministério Público incumbe “zelar” por “direitos”, sejam eles individuais ou coletivos, indisponíveis, mesmo contra o atuar do Estado. Além disso, tornou-se porta-voz daqueles direitos transindividuais, já que agora se reconhece que a sociedade é hipossuficiente, incapaz de defender seus direitos. Portanto, além de vigiar a estrita observância das normas atinentes a direitos assegurados no ordenamento jurídico, aproveita o Ministério Público para sanear o atuar administrativo de ações contrárias ao ordenamento jurídico e até reunir elementos para a propositura de ações coletivas. Rogério Bastos Arantes, ao cuidar da “hipossuficiência” da sociedade brasileira, assinala: A idéia, em suma, é que temos uma sociedade civil fraca, desorganizada e incapaz de defender seus direitos fundamentais. Além disso, freqüentemente, é o próprio poder público quem mais desrespeita esses mesmos direitos. Dessa equação resulta a proposta, de natureza instrumental, de que “alguém” deve interferir na relação Estado-sociedade em defesa dessa última. Instrumental no sentido de que não é para sempre: pelo menos no momento imediato, “alguém” tem que tutelar os direitos fundamentais do cidadão até que ele mesmo, conscientizado pelo exemplo da ação de seu protetor, desenvolva autonomamente a defesa de seus interesses. O mandado de segurança é instrumento de proteção de direitos individuais, ou coletivos, não protegidos pelo habeas corpus ou habeas data, ameaçados ou violados por ato/omissão de autoridade pública, com ilegalidade ou abuso de poder (artigo 5º, incisos LXIX e LXX ,da Constituição Federal). Sua característica primordial é proteger a pessoa contra o arbítrio do poder público, antes restrita a autoridades e agentes do Executivo e depois expandida para compreender autoridades e agentes de quaisquer dos Poderes, inclusive Legislativo e Judiciário. O comando do artigo 127 da Constituição Federal determina que cabe ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Se ao Ministério Público ainda coubesse a participação em qualquer ação de mandado de segurança, apenas pelo fato de se tratar de uma ação de mandado de segurança, em obediência cega ao artigo 10 da Lei 1.533/1951, chegaríamos à hipótese, não menos curiosa, de ausência de fundamento (artigo 82 do Código de Processo Civil) para atuar em ação ordinária manejada com o mesmo objetivo. O Ministério Público intervirá na defesa do direito social ou individual indisponível, contra a ilegalidade ou o arbítrio da autoridade ou do agente público. E, aliando-se tal dispositivo com o artigo 129, inciso II, da Constituição Federal, que determina ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nessa Constituição”, o constituinte manteve, portanto, a preocupação em proteger a pessoa contra o arbítrio do poder público, justamente um dos objetivos a ser alcançado pelo instrumento processual – mandado de segurança – que é considerado uma garantia constitucional, determinando que o Ministério Público continue a velar por esses direitos, promovendo, inclusive, as medidas necessárias a sua garantia. Reconhece, portanto, a hipossuficiência do Estado na proteção dos direitos, inclusive perante o próprio Poder Público, e dá ao Ministério Público a tarefa de “zelar” por eles. Apresenta-se, portanto, desconforme à Constituição a defesa de direitos disponíveis pelo Ministério Público em qualquer tipo de ação, porque a Constituição Federal afastou a possibilidade de o Ministério Público atuar como representante judicial de quem quer que seja, a não ser para a defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis. Mas qual é a pedra de toque, o ponto tangencial entre disponível e indisponível? A dignidade da pessoa humana. Pode-se, em termos gerais, dispor sobre o direito de herança e sobre a inviolabilidade da casa, mas não se pode dispor sobre o direito à vida. Será, pois, a concretude dos casos que vai fazer aflorar a característica do direito postulado (disponível/indisponível), sempre tendo como norte a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do nosso Estado de Direito (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal). Em termos processuais existem quatro formas de alguém participar de uma ação judicial: promovendo a ação – autor; sendo citado como réu; sucedendo a parte na causa (artigos 41 a 43 do Código de Processo Civil e artigo 9º da Lei 4.717/1965, por exemplo) ou intervindo em processo, instaurado entre terceiros. O Ministério Público pode participar processualmente sob qualquer das hipóteses sobreditas, desde que para a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, quando é obrigatória a sua intervenção, sob pena de nulidade (artigos 127 e 129 da Constituição Federal e artigos 84 e 246 do Código de Processo Civil). Ao intervir no processo instaurado por terceiros, atua como fiscal da lei e na busca da verdade real, sendo autorizado a produzir provas e a interpor quaisquer recursos (artigo 83 do Código de Processo Civil) . Diferente, pois, de qualquer um outro interveniente que visa interesse próprio, já que o Ministério Público objetiva defender direito indisponível, seja ele individual ou de interesse público. Nesse contexto, a intervenção do Ministério Público em ações reguladas pela legislação ordinária, anterior ao texto constitucional vigente, deve ser vista com os “óculos” da Constituição Federal de 1988: o Ministério Público deve ser intimado, obrigatoriamente, sob pena de nulidade, mas só intervir para fortalecer a promoção de ações penais ou civis, ou para buscar a verdade real, em processos judiciais de terceiros, sempre para a “defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis” e para cumprimento das demais funções constitucionais (artigos 127 e 129 da Constituição Federal). Portanto, é inconstitucional a tentativa de se afastar a participação do Ministério Público nas ações de mandado de segurança. Posto que, muito embora não possa ser autor, cabe-lhe intervir na ação instaurada por terceiro, para a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, além “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nessa Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”(artigo 129, inciso II, CF). Se em determinada ação de mandado de segurança o impetrante alega que a autoridade pública deixou de lhe conceder férias no período requerido, ele está postulando a proteção de um interesse pessoal de usufruir férias em mês determinado. O ordenamento jurídico não contempla tal “direito”, como pretende o impetrante. O direito assegurado pela Constituição Federal é o de gozo de férias anuais e remuneradas (artigo 7º, inciso XVII, CF), mas não na data que aprouver ao interessado. Nessas situações, está-se diante de mero interesse pessoal, que não exige, em tese, a intervenção do Ministério Público. Em outro caso, o impetrante, pessoa jurídica, está sendo obrigado a recolher ICMS com alíquota diversa de outra pessoa jurídica, que tem tratamento legal mais benéfico. Ele alega violação a isonomia tributária e inconstitucionalidade da norma. Sustentam alguns que a intervenção ministerial não é obrigatória, porque o impetrante estaria a defender interesses econômicos. Ele, então, teria a opção de dispor desse conteúdo. Tal visão é, contudo, muito estreita. Primeiro, porque desconsidera a obrigatoriedade de intervenção nas ações em que se discute a constitucionalidade de normas. Segundo, porque não consegue enxergar as conseqüências desse agir fiscal no meio social, que nega a aplicação a princípio de ordem constitucional e afeta a estabilidade econômica das empresas, com reflexos diretos no livre exercício do trabalho e naqueles que dependem do emprego para seu sustento e da família, portanto, na sociedade. Esses dois exemplos servem para se refletir que, se até agora o Ministério Público intervinha em toda e qualquer ação de mandado de segurança, a sua postura constitucional lhe impõe um atuar mais qualificado, que dispensa a intervenção quando a ação não estiver caracterizada por ameaça ou violação a direito indisponível, inclusive quando presente o interesse público primário na solução da lide (que é indisponível por natureza), não amparado por habeas corpus ou habeas data. Fixado, assim, que o fortalecimento da atuação do Ministério Público como órgão agente pela Constituição de 1988 não significou o fim da sua atuação no feito judicial sob qualquer das formas permitidas pelas leis processuais, notadamente, a intervenção como custos legis, ou seja, em demanda de terceiros, para a “defesa de direitos indisponíveis”, seja individual, ou público, exige-se dos dirigentes do Ministério Público coragem e discernimento para saber conciliar essa atuação, taxada de tradicional, antes circunscrita à persecução criminal estampada nos inquéritos policiais e de intervenção opinativa em feitos cíveis, e que pautou o atuar do Ministério Público por muitas décadas, com as novas incumbências do Ministério Público de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, que exige a adoção de novas posturas institucionais. Sob esse último aspecto, não mais se pode ficar somente à espera de ações cíveis judiciais propostas por terceiros, ou sujeito à escolha da autoridade policial sobre o que investigar por meio do inquérito policial , é preciso enxergar as demandas sociais e propô-las, se preciso for, perante o Judiciário. Observe-se que a ação de mandado de segurança traz a notícia de ameaça ou violação a direito individual indisponível, onde o Ministério Público somente manifesta-se naquele caso individual, quando poderia fazer muito mais quando verifica que o ato administrativo hostilizado é reiterado, atinge direito indisponível protegido constitucionalmente ou revela desvio administrativo passível de sanções penais, cíveis e administrativas (Lei 8.429/1992) . É preciso abrir esse espaço de atuação, apto a sanear o atuar administrativo, consentâneo com a função constitucional de “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nessa Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” (artigo 129, inciso II, da Constituição Federal). E, sendo a ação sujeita a rito processual célere, sem audiência de instrução e julgamento, não há motivo para vinculação do Membro do Ministério Público a qualquer juízo, podendo a distribuição de feitos ser aleatória . Esse atuar positivo coloca o Ministério Público na posição de “advogado” das causas sociais, de interesse público, situação incompatível com o modelo de distribuição funcional existente, e seu aparato administrativo. A adoção do paradigma de divisão de trabalho existente no Judiciário serviu por muito tempo, mas não consegue acolher a atuação de agente provocador de demandas fundamentadas no interesse público primário (indisponível). É preciso ousar, construir novos modelos administrativos aptos a permitir que o Membro do Ministério Público atue de forma dinâmica e conciliadora de suas diversas formas de participação processual, notadamente nas posições de autor e de custos legis.

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