Herança de infância. Quando morria alguém, meus pais nos poupavam, os filhos, da cena tragicômica dos féretros de outrora, com seus penachos, essas e castiçais prateados, imensas coroas com odor de flores decíduas, cruzes, velas, muito preto, muito crepe, muito pranto. Para meu pai, a morte era uma delicada senhorinha que levou o velhinho para descansar, para um passeio. Quando se tratava de criança, minha mãe intervinha. Não, agora não foi uma moça. Foram anjinhos que vieram buscar o nenê para enfeitar o céu. Aí, meu pai lançava um incrédulo soslaio e resmungava: "Não dá para botar uma menininha aí não?". Preferia que o infeliz tivesse sido levado a brincar por aí, só Deus sabe onde, por outra criança. Fazia sentido. Incorrigível romântico, devo a ele os símbolos que povoam meu imaginário. Contava-nos histórias de fadas, de reis e princesas e duquesas. Certa feita, perguntei-lhe como era uma duquesa, pois dos outros eu tinha idéia, as figuras dos livros sempre os exibiam. Lembro-me que, olhando através do janelão da imensa sala de tábua corrida, levantou-se e nos acomodou no peitoril. Passava no momento uma esguia senhora, de porte altaneiro, andar gracioso e discreto, olhar à frente, altivo, mas comedido, sem afetação, portando uma sombrinha aberta por sobre seu pequeno chapéu, o qual encimava um cabelo prateado preso à altura da nuca. Nesse tempo, as senhoras só saíam a passeio de chapéus, luvas, sombrinhas e vestidos longos à altura do calcanhar. Disse-nos ele: "Ali, uma duquesa é assim. Ela deve ser uma duquesa." A dita senhora morava em suntuoso palacete, uma bem assentada vila que distava um pouco, uma boa caminhada, de nossa casa. Soube depois, muito depois, que era viúva de um dos membros da aristocracia rural, rico fazendeiro e comerciante, comendador da Santa Sé, Costumava ela caminhar pela estradinha que margeava as residências. Seria isso seu único lazer. Hoje isso seria impossível, pois a pavimentação que adveio trouxe perverso fluxo de carros; o sítio não mais é mais a uma duquesa apropriado passear. Todos os dias púnhamo-nos aos peitoris para ver o passeio da duquesa. Isso povoou minha infância. Já adulto, conheci uma cidade estrangeira, notei-lhe a discrição dos velhos e decadentes edifícios; há algo neles que espanca a vulgar reforma. São mantidos com os atavios que sobraram aos saques e pilhagens das passadas guerras. Somente quando se faz necessário, preenche-se a lacuna de um objeto, de um lustre, de um corrimão, de degraus, com objeto novo, mas a substituição prima pela singeleza e elegância. O que seria miçanga vira jóia sobre o colo de Viena. Viena, sóbria, elegante, aristocrática, me fez invocar a duquesa de minha infância. Certo dia observamos que a duquesa, embora sem alguém que a escutasse, conversava e às vezes gesticulava discretamente enquanto caminhava. Explicou-nos nosso pai que, a uma certa altura da vida, as pessoas conversam com a estrada. Caminham e conversam, fazem reclamações, pedidos, observações, até que um dia, satisfeitas por terem dito tudo que queriam, acompanham a suave e bela moça de robe longo. De fato, algum tempo depois, não mais vimos a duquesa que conversava com a estrada. Passados os anos, meu pai também passou a dialogar consigo mesmo, dado o que chamava de uma injusta viuvez, e por isso era, quando em quando, alertado por netos, "Vô, você está conversando sozinho ?". "Não filhinho, estava conversando com a estrada, estava caminhando pela carroçável." Eles riem, mas não entendem. Não adiantaria contar-lhes a origem da encantadora prosopopéia. Hoje em dia, as duquesas têm outras aparências e hábitos. Tempos depois, bem velhinho, quase ao fim, vi-o de longe a caminhar e notei que gesticulava. Alcancei-lhe os passos e à minha interpelação jocosa, respondeu: " Não, não era com a estrada, prosava com tua mãe, mas anseio por ter um franco diálogo com ela. Assim, pondo-a no devido lugar. Tenho imaginado nossa altercação, eu e a estrada, assim: Ó estrada, percorri palmo a palmo teus caprichos; atendi tuas vontades, acolhi tuas surpresas, aliei-me a tuas maldades e sobrevivi a tuas armadilhas. Nada mais me tens a oferecer." Diante de meu dorido silêncio, prosseguiu: Incompassiva, imagino-a a redarguir: "Impossível, velho, sem vossa submissão não há mais caminhar. Se vós me julgais algoz de vossos passos, devo invocar altiva o servil papel de ter sido vosso tapete. Em brumas resguardei vossos sonhos, em graminhas e flores encastoei vossos desejos, em geadas amainei vossos ódios, em camadas de poeira envolvi vossas fraquezas. Vossos escorregões mais se devem a vossas intemperanças que às minhas anfractuosidades, admiti." "Nada disso fizeste espontaneamente, estrada. Paguei o justo preço, diria eu, e poria um basta à sua petulância, assim : - Do imo de meu peito, alegro-me, pois livro-me de tuas caprichosas curvas, de tuas perversas bifurcações". Encerrou o imaginário diálogo com um riso amplo, na medida de suas forças, como se houvesse vencido um debate. Pouco tempo depois, deu-se o desfecho de tudo isso. Certa manhã ele demorou-se no leito mais que o usual. Era um domingo; eu e minha mulher, apreensivos, fomos a seus aposentos. Encontramo-lo ao leito, com os braços cruzados de modo que as mãos em palmas repousavam sobre os ombros, como se num amplexo. Parecia sorrir. Por um instante pareceu-nos ouvir o ruflar de um robe de seda. Trocamos um olhar de cumplicidade e sorrimos.